ESTUDO DE UM CASO

Quem passa diariamente pelas ruas da ESALQ certamente nem imagina como fenômenos que ocorrem num prosaico laguinho possam envolver interessantes conceitos de química. E o melhor de tudo é que não é difícil entendê-los!

 


Em geral pensamos que na natureza o pH de um meio varia sempre em torno da neutralidade. Entretanto, às vezes nos surpreendemos com valores bem acima ou abaixo de 7. É bom lembrar que como  a escala de pH é logarítmica cada unidade de abaixamento ou elevação de pH tem significado diferente em termos de quantidade de acidez ou alcalinidade.

Foram efetuadas ao longo de um dia, medidas de pH de amostras água de um lago da ESALQ, coletadas na profundidade de 0-20 cm. Determinou-se também a concentração de alguns íons.

 

Horário

pH

Temperatura (oC)

7:15

8,69

24

9:30

8,95

25,5

11:30

9,10

26,5

14:05

9,25

29,5

16:30

9,35

29,5

 

mol L-1

 

Ca+2

2,28 10-4

 

CO3-2

1,22 10-3

 

Na+

1,39 10-3

 

 

 

Foi de certa forma surpreendente observar um valor de pH acima de 8 logo no início da manhã. Mais espantoso ainda, foi verificar como o pH se elevou ao longo do dia, atingindo valores acima de 9. Como poderiam aqueles guaruzinhos nadar tão à vontade na água a pH 9?

A titulação de uma amostra de 200 mL de água com solução de HCl 0,02525 mol L-1 mostrou que o sistema carbonato dominava o equilíbrio ácido-base no sistema considerado. Observa-se a formação de um sistema tampão, que pode ser atribuído ao par conjugado H2CO3/HCO3- , cujo pKa é 6,2.

        


O fato do íon bicarbonato HCO3- ser a espécie carbonatada predominante esta de acordo com os valores de pH medidos. Pelo gráfico abaixo pode se observar que ao pH ao redor de 8,5 a espécie carbonatada predominante em solução aquosa é o íon HCO3-.

 


 

Os resultados fornecidos pelo programa de especiação iônica Minteq confirmam que, devido ao pH 8,69, a espécie HCO3- predomina e representa 96,1% da concentração total das espécies carbonatadas. O balanço de cargas mostra que o sistema esta bem representado pelos íons considerados.

 

 

Espécie

Concentração (mol L-1)

Atividade (mol L-1)

Ca+2

0,000218

0,000180

CaCO3 (aq)

7,68 10-3

7,68 10-6

CaHCO3+

2,69 10-6

2,57 10-6

H2CO3* (aq)

5,13 10-6    ( 0,4 %)

5,13 10-6

HCO3-

0,00117      ( 96,1 %)

0,00112

CO3-2

3,10 10-5     ( 2,5 %)

2,57 10-5

H+

2,14 10-9

2,04 10-9

OH-

5,17 10-6

4,93 10-6

pH

8,69

S Cátions  ( mol carga/L)

1,82 10-3

S Ânions  ( mol carga/L)

1,24 10-3

Força iônica

0,0018

 

 

 

Outra informação interessante é que a água do lago se encontra em condições favoráveis de precipitação de CaCO3 conforme mostram os valores do índice de saturação positivo. Isso não quer dizer que efetivamente esteja ocorrendo precipitação de CaCO3, mas que existem condições para que isso ocorra. Cálculos termodinâmicos indicam a possibilidade de ocorrência, mas não informam sobre quando os fenômenos ocorrem.

 

Mineral

Índice de saturação

Aragonita

0,006

CaCO3xH2O

-1,194

Calcita

0,146

Portlandita

-9,068

Vaterita

-0,424

 

 

Pode-se observar que a água do lago contém uma grande população de algas. Uma questão que pode ser levantada é como que as algas presentes na água fariam fotossíntese se para isso necessitam de CO2 e este está presente dissolvido como H2CO3 numa proporção tão baixa.

A fotossíntese efetuada pela grande população de algas existentes promove o consumo do pouco de CO2 dissolvido na água na forma de H2CO3  , que é a espécie carbonatada em menor proporção na água desde o início do processo. Esse consumo, obedecendo ao principio de Lê Chatelier,  promove por sua vez o deslocamento para a direita do equilíbrio:

 

HCO3- + H2O   H2CO3 + OH-

 

Para repor a espécie H2CO3, o íon HCO3- reage com a água e sua concentração é obviamente diminuída e a produção de íons OH- causa o aumento de pH. A especiação efetuada pelo MINTEQ evidencia esse processo, através da variação das concentrações das espécies envolvidas

 

 


É importante ressaltar que os cálculos foram efetuados considerando no programa Minteq um sistema fechado, impondo a condição de não equilíbrio entre a fase líquida e o CO2 gasoso. Embora isso possa parecer estranho em se tratando de um sistema natural aberto para atmosfera está de acordo com os dados experimentais. Se o tal equilíbrio ocorresse, a concentração de CO2 na água não abaixaria, e tampouco o pH da água se elevaria, pois a atmosfera atuando como um depósito regulador do CO2 reporia a fração deste gás consumida pelas algas.

Na condição real o pH efetivamente se eleva porque o CO2 atmosférico não de difunde para contrapor ao processo de consumo de H2CO3. Os gases na verdade apresentam uma difusão muito limitada em meio aquoso.

Durante a noite, na ausência de luz, a fotossíntese cessa e o processo da respiração consome O2  e produz CO2 e o pH abaixa.

E tudo recomeça na manhã  seguinte....

Este é um claro exemplo do poder de previsão dos cálculos de equilíbrio químico.